O povo do Haiti <br>não arreda pé
Pela enésima vez, o Conselho Eleitoral Provisório (CEP) haitiano recusou-se, esta semana, a implementar uma comissão de inquérito que responda aos anseios dos centenas de milhares de manifestantes que, há mais de um mês, denunciam uma «massiva fraude eleitoral» na primeira volta das eleições presidenciais do passado dia 25 de Outubro.
Segundo os resultados provisórios lançados pelo CEP, o candidato mais votado, com 32 por cento dos votos, teria sido o neófito Jovenel Moïse, do partido Tèt Kale, apoiado pelo actual presidente, Michel Martelly. Rumo à segunda volta estaria também o antigo secretário de Estado das Obras Públicas, Jude Célestin, com 25 por cento dos votos. Só em quarto lugar, com sete por cento dos votos, surgia Maryse Narcisse, candidata pelo influente Fanmi Lavalas, o partido de Jean-Bertrand Aristide, o primeiro presidente democraticamente eleito da história do Haiti.
Embalde a presença militarizada da ONU e dos EUA no território, o acto eleitoral foi o que só poderia ter sido: um fiasco. Gerido por um governo ditatorial e mafioso, o escrutínio foi inserido num calendário de repressão e chantagem contra o povo haitiano. Nos relatórios dos observadores internacionais, palavras como «farsa» ou «espectáculo tragicómico» populam as descrições de mesas de voto em que alguns eleitores votaram centenas de vezes e onde milhares de urnas foram queimadas consoante o resultado. De acordo com um estudo do Instituto Igarapé (Brasil) à boca das urnas, 90 por cento dos eleitores haitianos consideram que houve fraude e apenas seis por cento terão votado em Jovenel Moïse. Desde então que o movimento popular tem denunciado a fraude em manifestações diárias que enfrentam uma selvagem brutalidade policial que já cobrou as vidas de pelo menos seis manifestantes. Uma violência que não parece, contudo, desmobilizar a luta: «Só a contínua mobilização, de Norte a Sul, pode garantir o respeito pelos direitos do povo e pelos seus votos», disse aos jornalistas Maryse Narcisse, do Fanmi Lavalas, pela primeira vez a votos desde o golpe que, em 2004, depôs Jean-Bertrand Aristide. Outros oito candidatos que também contestam os resultados ameaçaram «forçar um governo transitório» caso o executivo e o presidente cessante insistam em impedir um inquérito às eleições de Outubro. Posições semelhantes foram defendidas pelos principais dirigentes católicos e protestantes do país.
O epicentro da luta permanece nas ruas e a espiral de manifestações e greves (de que é exemplo a paralisação nacional dos trabalhadores dos transportes do passado dia 9 de Novembro) permitiu às massas partir de reivindicações democráticas para exigências políticas mais amplas.
Paternalizar os criminosos,
infantilizar as vítimas
Foi, de resto, a própria fraude eleitoral que reafirmou a responsabilidade do imperialismo no rumo do país mais pobre do hemisfério ocidental: segundo documentos revelados em Novembro por três deputados do partido no poder, foi a responsável pela missão da ONU no Haiti, Sandra Honore, que executou a trapaça eleitoral, encarregando a MINUSTAH (braço armado da ONU no país) e a UNOPS (Departamento de Serviços e Projectos) de substituir as urnas cheias de votos autênticos por outras com boletins manipulados. A atmosfera democraticamente rarefeita que o Haiti respira é, com efeito, corolário de uma política imperialista de saque que, desde o primordial levantamento de escravos de 1804, arrasta aquele povo. Ainda assim, a actual situação da nação caribenha pode ser mais imediatamente explicada com dois factores: os Clinton e a «indústria» das Organizações Não Governamentais (ONG).
Durante os anos 90, a economia haitiana foi virada do avesso pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA): a ilha foi obrigada a reduzir as taxas sobre o arroz importado dos EUA. E enquanto o governo dos EUA subsidiava essa produção, políticas neoliberais impediam o governo haitiano de fazer o mesmo. Incapaz de competir com o gigante do Norte, o Haiti passou a depender do monopólio dos EUA para se alimentar. Desde então, todas as experiências democráticas que resistiram aos interesses do 'Arroz de Miami' foram recebidas com golpes de Estado.
Neste processo, têm responsabilidades históricas não apenas os EUA e a ONU, mas também o exército de ONG que fizeram do Haiti a sua coutada.
Apesar dos cerca de 10 mil milhões de dólares doados para reconstruir a ilha em 2010, o país contínua tão pobre como sempre. Afinal, para onde foi o dinheiro? É esta a pergunta do estudo «Haiti depois do terramoto», de Bill Quigley e Amber Ramanauskas, que concluiu que 33 por cento de todo o dinheiro doado para reconstruir o Haiti foi usado para pagar a estadia de 5000 soldados dos EUA. Outros 42 por cento foram financiar directamente as centenas de ONGs no terreno. Só um por cento do dinheiro doado acabou em instituições públicas ou no Estado.
É sintomático, neste aspecto, o projecto da (ONG) Fundação Clinton, que investiu dezenas de milhões de dólares na criação de hotéis de luxo privados e de um parque industrial sul-coreano de mão-de-obra barata. Grande parte das ONG no Haiti alimenta-se da pobreza e aninha-se no colo dos senhores imperiais, optando por gerir a dependência da «ajuda» à emancipação.
A fraude eleitoral de 25 de Outubro é a ponta do icebergue imperialista, cujo desígnio histórico é transformar o Haiti num navio negreiro.